sábado, 22 de outubro de 2011

Estamira e sua "lucidez perigosa" - por Siomara Spinola



“Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade... Capturar a mentira e jogar na cara. Ensinar a eles o que eles não sabem.”

“Não tem mais inocente... Tem esperto ao contrário.”

“O espaço inteiro é abstrato. O que se vê lá em cima é só reflexo do que está aqui embaixo.”

“Que Deus é esse? Não é ele que é o próprio ‘trocadilo’? Ele e sua quadrilha...”

“A Terra falava, agora ela tá morta. A morte é dona de tudo”

“ Todos os homens têm que ser iguais, tem que ser comunistas... tem que ter ‘igualidade’.”

“Tudo o que é imaginário tem, existe, é.”

Essas são apenas algumas das brilhantes frases de Estamira, que assim se define, em sua forma de sangue e carne: “Eu sou ‘formato homem par’, que são as ‘mãe’... ” Sua carne e seu sangue são indefesos, não sua “áurea”. Formato homem par e formato homem ímpar, assim ela define os gêneros feminino e masculino. Uma louca? Não, muito pelo contrário, extremamente lúcida, consciente, ciente. Lucidez perigosa...

Ouvindo tais maravilhas saídas da boca de uma mulher tão simples, como imaginá-la uma doente mental? Como julgá-la “possuída pelo demônio”? Pois se ela é, de fato, como diz, a visão de cada um? Sim, sua missão é revelar a verdade, uma verdade que a maioria prefere não ver nem ouvir. Capturar a mentira e a hipocrisia e tacá-las na cara, e não ser capturada por elas. Ensinar aos formatos homens pares e ímpares aquilo que desaprenderam. Estamira não precisa de um Deus que fale por ela. Estamira tem voz própria, ela é a própria deusa, a Deusa da Anunciação. E ela incomoda, incomoda muito.

As palavras contundentes de Estamira, carregadas de uma brutal lucidez (alucidez perigosa de que fala Clarice Lispector!), são insuportáveis para o ser comum, aprisionado e amedrontado, agarrado a seus dogmas, a suas ficções, a suas mentiras. Porque ela, Estamira, não é comum, isso ela faz questão de frisar. Aponta os filhos, dizendo: “Eles são comuns, eu não!” Claro que querem calar a boca dessa mulher. Afinal, quantos suportam ver a sua mediocridade e a sua covardia reveladas por uma mulher como Estamira? Como ousa uma mulher como ela cuspir na cara tantas verdades intoleráveis? Por isso precisam dopá-la, “acalmá-la”, tirar-lhe o excesso de energia vital que transborda por seus poros, que jorra pela sua boca.

Estamira, mais do que “profeta”, é uma filósofa sem nunca ter tido aula ou lido um texto de filosofia. No entanto, ela é Nietzsche, é Zaratustra... anuncia a morte de Deus, a morte da Terra, a morte do próprio formato homem par e ímpar, cria conceitos filosóficos. O conhecimento de Estamira é totalmente intuitivo; ela não foi à escola “copiar” como diz, denunciando a hipocrisia do ensino, que na maior parte das vezes ensina a reproduzir, não a criar, como ela faz.

Estamira se diz má, mas não perversa. Sim, ela tem a “maldade” da crueldade necessária de quem diz aquilo que deve ser dito. Ela tem a “maldade” dos que não são cordeiros passivos de um rebanho, acuado, medroso; dos que não se submetem à ordem estabelecida, seja ela religiosa ou moral. Estamira é generosa, não quer nada para si, não quer fazer mal a ninguém; diz gostar de ajudar as pessoas. Chega a ser cômico ouvir sua filha dizer que ela é meio louca, “não é 100%”, embora confesse, em outro momento, ficar perturbada com algumas coisas que a mãe diz, coisas que para ela parecem ter um fundo de verdade. Ao menos, ela intui que existe algo ali... Ao contrário de seu irmão, castrado por uma “fé” cegante que o deixa impermeável às palavras de Estamira. Para se proteger contra as perigosas “heresias” ditas pela mãe “possuída”, ele recita febrilmente citações da Bíblia. Quem é o louco nessa história?

Estamira não é perturbada, ela é, sim, perturbadora, subversiva, criadora. É alguém capaz de gerar vida, poesia e pensamento mesmo em meio ao lixo. Ela é possuída, sim, mas por uma força da natureza, por uma potência de vida transbordante que não pode ser contida. Na loucura de sua lucidez ou na lucidez de sua loucura, Estamira diz coisas assombrosas. Uma “maluca-beleza”, como Raul Seixas: “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual, eu do meu lado aprendendo a ser louco, um maluco total, na loucura real, controlando a minha maluquez, misturada com a minha lucidez...”.
É ao mesmo surpreendente e enternecedor descobrir Estamira, uma estrela tão brilhante, uma potência de vida tão afirmativa e de tamanha intensidade. Ela é a prova da imanência, da existência virtual e abstrata além da carne, além do sangue, além das formas, dos formatos. “Além dos ‘além’, para onde sangüíneo nenhum pode ir”...

Mas ela avisa: “Vocês não vão entender de uma só vez”.

Estamira chega a causar um certo constrangimento em nós outros, formatos homens pares e ímpares mais “comuns”.


Fonte: http://utopiaimanente.blogspot.com/2007/03/relembrando-estamira-e-sua-lucidez.html




Estamira faleceu no dia 28 de julho de 2011, de infecção generalizada.

2 comentários:

  1. Obrigada por compartilhar meu texto.
    Abraço.

    Siomara Spinola

    ResponderExcluir
  2. Teu texto é fantástico! Parabéns!!!
    Abraços pra você também!!!

    ResponderExcluir

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Nina

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Carolina Carvalho
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