O pai de uma criança de dois anos conta que ligou a televisão e, inesperadamente, viu a destruição causada por uma bomba colocada em um edifício público de Oklahoma. Assistiu, enquanto os bombeiros carregavam corpos inertes e ensangüentados de bebês que eram retirados das ruínas da creche que funcionava no primeiro andar. Diz que, no passado, era capaz de se distanciar do sofrimento alheio. Mas, desde que se tornara pai, isso havia mudado. Sentia como se cada uma daquelas crianças fosse seu filho. Sentia a dor de todos os pais como sendo sua.
Essa identificação com o sofrimento dos outros, a incapacidade de continuar a observá-lo de longe, é a descoberta de nossa ternura, a descoberta do bodhichitta. Essa é uma palavra sânscrita que significa "coração nobre ou desperto". Diz-se que está presente em todos os seres. Assim como a manteiga é parte do leite e o óleo, da semente de gergelim, essa ternura é inerente a mim e a você.
Stephen Levine escreve sobre uma mulher que estava morrendo, em terrível sofrimento e extrema amargura. No momento em que sentiu que não podia mais suportar a dor e o ressentimento, inesperadamente, passou a experimentar o pesar de outros em agonia: uma mãe faminta na Etiópia, um adolescente desvairado morrendo de overdose em um apartamento imundo, um homem esmagado por um deslizamento de terra, morrendo sozinho à margem de um rio. Ela relatou ter compreendido que essa não era a sua dor, mas a de todos os seres. Não era apenas a sua própria vida, mas a vida em si mesma.
Despertamos o bodhichitta, essa ternura pela vida quando não podemos mais nos proteger da vulnerabilidade de nossa condição, da fragilidade fundamental da existência. Nas palavras do décimo sexto Gyalwa Karmapa: "Recebemos tudo. Deixamos que a dor do mundo toque nosso coração e a transformamos em compaixão".
Diz-se que, em tempos difíceis, somente o bodhichitta pode curar. Quando não encontramos inspiração, quando nos sentimos prestes a desistir, esse é o momento em que a cura pode ser encontrada na ternura da própria dor. Esse é o momento de tocar o autêntico coração do bodhichitta. No meio da solidão, do medo, do sentir-se incompreendido e rejeitado, encontra-se a pulsação de todas as coisas, o autêntico coração de tristeza.
Uma pedra preciosa fica enterrada durante um milhão de anos e não perde a cor nem é danificada. Do mesmo modo, por mais que possamos espernear, nada afetará este coração nobre. Essa jóia pode ser trazida para a luz a qualquer tempo e resplandecerá com todo seu brilho, com se nada tivesse acontecido. Não importa quanto estejamos comprometidos com a rudeza, o egoísmo ou a ganância, o autêntico coração do bodhichitta não pode ser perdido. Está bem aqui, em tudo que tem vida, intacto e completamente íntegro.
Quando nos protegemos do sofrimento, achamos que estamos sendo bondosos conosco mesmo. A verdade é que apenas nos tornamos mais amedrontados, endurecidos e alienados. Percebemos a nós mesmos como separados do todo. Essa separação transforma-se em uma espécie de prisão- uma prisão que nos encerra em nossas próprias esperanças e medos, que nos leva a nos importarmos apenas com aqueles que estão mais próximos. O curioso é que, antes de mais nada, estamos tentando nos proteger do desconforto e, com isso, sofremos. Já quando não nos fechamos e permitimos que a dor toque nosso coração, descobrimos nossa afinidade com todos os seres. Sua Santidade, o Dalai Lama, descreve dois tipos de pessoas egoístas: as sábias e as tolas. As tolas pensam apenas em si mesmas, o que resulta em confusão e dor. As sábias acreditam que estar ali, apoiando os outros, é a melhor coisas que podem fazer por si mesmas. Como resultado, sentem alegria.
Quando encontramos uma mulher com o filho no colo, pedindo esmolas na rua, quando vemos um homem surrar impiedosamente seu cão aterrorizado, quando nos deparamos com um adolescente espancado ou com o medo nos olhos de uma criança, damos as costas porque não podemos suportar? Isto é o que a maioria de nós provavelmente faz. Alguém precisa nos encorajar a não deixar de lado o que sentimos, a não nos sentirmos envergonhados pelo amor e pesar que surgem, a não temer a dor. Alguém tem de nos dizer que é possível despertar a ternura que existe em nós e que, ao fazer isso, mudaremos nossa vida.
A prática de tonglen - enviar e receber- tem o propósito de despertar o bodhichitta, de nos colocar em contato com esse coração nobre e autêntico. Essa prática consiste em receber em si mesmo a dor e espalhar alegria, invertendo radicalmente nosso tão bem estabelecido hábito de fazer o contrário.
Tonglen é uma prática que visa a criar espaço, a ventilar a atmosfera de nossa vida para que as pessoas possam respirar livremente e relaxar. Sempre que encontramos o sofrimento, sob qualquer forma, as instruções de tonglen nos dizem para inspirá-lo, com o desejo de que todos possam se libertar da dor. Sempre que encontramos a felicidade, sob qualquer forma, devemos expirá-la, dirigi-la para fora, com o desejo de que todos possam sentir alegria. Essa é uma prática que permite às pessoas sentirem-se menos oprimidas, menos limitadas. Ela nos mostra como amar incondicionalmente...
... Quando nos protegemos para não sentir dor, essa proteção transforma-se em uma espécie de armadura, uma couraça que aprisiona a suavidade de nosso coração. Fazemos tudo o que vem à mente para não nos sentirmos ameaçados. Tentamos prolongar a sensação de estar bem consigo mesmo. Quando vemos nas revistas fotografias coloridas de pessoas se divertindo na praia, muitos de nós sinceramente desejam que a vida pudesse ser assim tão boa.
Quando inspiramos a dor, de algum modo, ela penetra nossa couraça. Nossa proteção vai sendo suavizada. Aquela armadura pesada, enferrujada e rangente começa, enfim, a parecer menos monolítica. Com a inspiração, ela começa a ruir e percebemos que podemos respirar profundamente e relaxar. Bondade e ternura começam a emergir. Não precisamos mais ficar tensos, como se estivéssemos o tempo todo na cadeira do dentista.
Quando expiramos alívio e sensação de espaço, também estamos promovendo a desintegração da couraça. A expiração é uma metáfora para expressar a abertura total de nosso próprio ser. Quando sentimos que algo é precioso, em vez de nos apegarmos fortemente, podemos abrir as mãos e dividi-lo com os demais. Podemos dar tudo. Podemos compartilhar a riqueza desta insondável experiência humana.
Este trecho foi extraído do livro "Quando tudo se desfaz - orientação para tempos difíceis" de Pema Chödön- Editora Gryphus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita!
Nina